sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Os privilégios que os LGBTs querem

A ideia de que os LGBTs (eu incluso) queiram "mais" direitos em detrimento do restante dos cidadãos visa, rasteiramente, segregá-los ainda mais e colocá-los na posição de: Sociedade x "Eles".

É alimentada por falácias, da série “bobagens a repetir até colar”, que tentam confundir os conceitos de privilégio e de proteção a direitos que são diariamente cerceados pela intolerância.

Não se trata de "mais" e sim dos mesmos direitos, algo que não está garantido apesar dos mesmos deveres. Direito à dignidade, ao simples direito de ir e vir, à Segurança, à Educação (tendo em vista a evasão por causa do bullying), vários outros direitos civis e etcéteras. Isso é privilégio?
facepalm implícita - quando algo é tão, mas tão estúpido que o gesto nem é necessário...

Não, não tem fundamento algum falar em privilégio. Essa afirmação é de uma boçalidade tão gritante quanto dizer o mesmo de outras leis de proteção social, tais como:
  • A Lei Maria da Penha nasceu para proteger adequadamente as mulheres do machismo que as oprime com violência (moral, física e psicológica). A delegacia da mulher foi um outro avanço, para (em tese) tratá-las de maneira digna em momentos devastadores como o estupro e ampará-las quanto às surras do macho "exemplar" que as destrói em casa, pra citar 2 exemplos. Será que Delegacia da Mulher, assim como Hospital da Mulher, não deveria existir também por ser um "privilégio" que os homens não têm?...
  • O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) deveria ser revogado? Não pago pra ver se, entre outros, mortalidade infantil, gravides na adolescência, exploração do trabalho levam a nação muito adiante...
  • O Estatuto do Idoso também? Que a negligência, descaso, falta de educação e consideração reinem sem ele?
  • A Lei contra o Racismo, complementando a Constituição Federal pune a discriminação por raça, cor, etnia (qualquer que seja), bem como religião (!) ou procedência nacional; nasceu para que não se mantivesse as pessoas (principalmente afrodescendentes) à margem da impunidade contra as agressões à sua dignidade (alguma semelhança?)
  • O Estatuto do Índio (e Constituição, inclusive) os protege, pois doutra forma provavelmente estariam mais perto da extinção. Pra que índios, né?

Será que todos esses grupos são "privilegiados" e estão postos "acima" da sociedade ou estão protegidos das distorções provenientes dela? Essa proteção se dá sob o princípio constitucional da igualdade, que significa "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades". Ou seja, tal tratamento visa ao equilíbrio, a dar condições para que os mesmos direitos e deveres sejam satisfeitos.

Neste sentido, o PLC122, ora mandado à UTI pelo Legislativo, propõe tornar crime o ato de quem for "praticar, induzir ou incitar a discriminação", do que resulte a "ação violenta, constrangedora, intimidatória e vexatória, seja ela de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica". Isto não apenas envolvendo LGBTs, pois altera a mesma lei anti-racismo já citada e amplia o grupo: "crimes de ódio e intolerância resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, gênero, sexo, orientação sexual, identidade de gênero ou condição de pessoa idosa ou com deficiência".

Chamam a isto "mordaça gay". Sério? Vamos reler esse trecho:
de que resulte a "ação violenta, constrangedora, intimidatória e vexatória, seja ela de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica"
Liberdade de expressão não vem sem responsabilidade/consequências, nem é desculpa para ter Liberdade de Opressão, garantida pela Impunidade.

Laerte sobre preconceito contra gays

Alguns argumentarão, seguindo a linha de J.R. Guzzo (autor do famigerado "Parada Gay, Cabra e Espinafre", publicado pela Revista Veja), que não tem sentido um projeto assim, visto que a violência atingiria a toda a sociedade igualmente, sendo os homossexuais uma parcela ínfima das estatísticas: "entre 250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil. Mas, num país onde se cometem 50 000 homicídios por ano, parece claro que o problema não é a violência contra os gays; é a violência contra todos". Só faltou concluir com aquele bordão de que "há coisas mais importantes..." (Diga isso a quem não pode andar tranquilo na rua, à família e amigos de quem teve a vida ceifada covardemente; diga isso ao cidadão que pensa diariamente em tirar a própria vida por causa da pressão social que o cerca; vá lá e diga que "há coisas mais importantes")

Entretanto... Uma coisa é a criminalidade de que a sociedade toda é refém: roubos, tráfico, homicídios em geral, trânsito, corrupção, etc. Outra coisa é o Crime de Ódio, a que nem todos estão sujeitos. Garanto que esse discurso falacioso e alienante seria diferente, bem diferente, se fossem 300 negros mortos por racismo - não me refiro às vítimas da criminalidade ou da polícia, mas sim àqueles que sejam mortos só por serem negros e ponto, sem mais nem menos. Aborda o sujeito na rua e mata, por que?, porque você é "preto".

É preciso enxergar que qualquer morte motivada por crime de ódio merece atenção. Se morressem 10 gays no Brasil, assassinados friamente apenas por serem gays, já seria preocupante. As estatísticas só fazem crescer, ainda que haja o receio de expor-se ao denunciar, ser humilhado pelas autoridades e abrir o peito ao preconceito à queima-roupa.

Segundo o IBGE, dos 5.561 municípios brasileiros, apenas "486 (8,7%) possuíam programas ou ações para o enfrentamento da violência contra LGBT" em 2011. Vê-se que as autoridades, boa parte delas, está se lixando - ou se acovardando ante o lobby conservador-fundamentalista (como o da Bancada Evangélica no Congresso).

A revolta diante de tal cenário é natural e justa; e não menos justa é a discussão de políticas públicas ou mesmo dispositivos legais para que as próximas águas sob a ponte não sejam tão turvas (sem confundir discussão com discurso-retórico-demagogo-embromador ad infinitum).

Gato de CheshireOu toda a comunidade LGBT deve ficar quieta porque já tem direitos demais e vive no país das maravilhas? Nem Alice teve só flores, chuchu; a guria já começou aos tombos e tendo que diminuir a si mesma to fit in...



"A homofobia é como o racismo, o anti-semitismo e outras formas de intolerância na medida em que procura desumanizar um grande grupo de pessoas, negar a sua humanidade, dignidade e personalidade." (Coretta Scott King, viúva de Martin Luther King Jr, negra americana ativista e líder dos direitos civis)


Referências:

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Cotas e Tetas

Doa a quem doer, é a tendência que tem soprado nos ares das políticas públicas tupiniquins. Primeiro a polêmica das cotas raciais no Ensino Técnico e Superior. Agora a bola da vez é o quadro de servidores públicos - sonho de muita gente que enxerga aí a chance de mudar de vida e tenta a sorte em concursos, já que o mercado de trabalho é uma selva que nem paga lá aquelas coisas e no Governo os rendimentos de alguns cargos (+ estabilidade +benesses) inspiram a expressão "mamar nas tetas".

Ontem, a nossa presidente Rousseff assinou uma mensagem ao Congresso Nacional enviando projeto de lei que reserva para negros 20% das vagas em concursos públicos de órgãos do Governo Federal. Os aplausos à iniciativa, na III Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), não ecoam entre as opiniões divididas dentro e fora do Congresso.

(Antes de prosseguir é importante destacar que o Brasil é signatário de tratado da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, o qual exclui essas políticas como racismo)

Será que a questão racial é mesmo um impedimento à igualdade de oportunidade (para adentrar no serviço público) ou uma miragem de quem tomou muito sol na cabeça?


No concurso ninguém olha o seu tom de pele, quiçá checando a foto do RG quando você assina a lista da sala de provas; vale a meritocracia, especialmente em se tratando de concursos para Nível Superior.

No nível médio não creio ser tão "absurda" a ideia, mas: se a justificativa é abrir oportunidade para quem não teve acesso a Educação e preparo decentes, por que não reforçar os critérios Renda e formação em escolas públicas, já que a desvantagem tem pano de fundo Social?

(Não, com essas observações não estou negando que pessoas de cor negra foram vítimas de exploração histórica -inclusive por seus pares- e são vítimas de Racismo; apenas afirmo que igualam-se na vala social em que estão mulatos, pardos e, sim, brancos também. Portanto, não estaria me contradizendo ao sugerir que medida similar na iniciativa privada poderia ser positiva: a fixação de um X% de reserva a partir de determinado nº de funcionários, assim como já é feito com "portadores de necessidades especiais" - obviamente não porque ser negro é uma deficiência, mas por semelhantes dificuldades no acesso ao mercado de trabalho)

Importante ressaltar que os aprovados, por cota ou não, passam por Estágio Probatório (que elimina quem não tem competência na prática). O argumento de que cotas piorariam a qualidade dos serviços públicos não se sustenta.

Cota por "cor" (ou "raça") é uma máscara ridícula para a péssima qualidade na Educação e condições sociais dessas pessoas. E é ótimo instrumento para engrossar as linhas divisórias que aqui e ali nos segregam...

Políticas de proteção a segmentos da sociedade vulneráveis são importantes. Porém, a melhor forma de corrigir distorções é estruturar eficaz e eficientemente a Educação (e blindar legalmente contra a perseguição por preconceito). Pela raiz.

É fato que o acesso ao Ensino Público foi ampliado, e "bolsas" disso e daquilo contribuem pra tanto, mas é um ensino que produz analfabetos funcionais.

E assim vai prosperando a t(r)eta de nossos honoráveis políticos.



Referências:

domingo, 6 de outubro de 2013

Menina Inocência



É madrugada e ainda não há sol, embora claro.

A mulher de seus trinta e poucos entoa uma canção de ninar, sentada à beira do telhado úmido da casa de pedras (que certamente moeram ossos de alguns operários até edificada).

Está de camisola apenas, tão branca e transparente quanto sua pele - ora arroxeando com o vento frio.

Não fosse a geada e o chão coberto pelo fogo branco, o velho Antenor, seu vizinho, estaria ali varrendo e assoviando. Posteriormente prestaria testemunho então...

Mas ninguém viu -ou ouviu- o som macio, ôco do impacto.

Embolada em uma manta de bichinhos indistintos, aos poucos, distingue-se na calçada uma pequena mancha vermelha, escura.

Acima, Marta ainda entoa a canção de ninar, a que sempre recorria para pacificar o sono da criança nestas primeiras semanas.

Sua filha agora dorme, conclui amparando-se abraçada aos joelhos feridos pelas orações da véspera. Pobres joelhos...

domingo, 15 de setembro de 2013

Eu sei, mas não devia

E assim arrancaram-se os dentes do sono que começara a morder na madruga...
Daí a gente vai pra cama com este "sono banguela", que ficará a chupar, amolecendo as carnes aos pouquinhos, feito a 20ª bolacha de maizena quando o céu da boca está todo machucado.
(Ou)vi dizer uma vez que ir dormir com um sorriso no rosto ajuda a ter bons sonhos. Não deixemos de sorrir antes de dormir.



"Eu sei, mas não devia" de Marina Colasanti recitado por Antônio Abujamra no Provocações:
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.