sábado, 7 de junho de 2008

No cotidiano da grande cidade

(à moda dos mini-contos)

Era sempre a mesma coisa, aquele carrão parava no cruzamento, ele se aproximava, limpava o pára-brisa com esmero e estendia a mão, à espera do trocado, mas o motorista acelerava e ia embora, sem ao menos olhar para o lado. Desta vez ele foi mais rápido e cortou a jugular do cidadão com um caco de vidro dos grandes.

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No terceiro dia seguido que ele esperou ela entrar no metrô lotado e já foi se encostando por trás, encoxando-a, ela até facilitou as coisas. Mas, no momento exato em que o trem partiu, sacou a agulha de tricô da bolsa e enfiou com tudo no vão das suas próprias pernas, absolutamente segura de que acertaria o alvo, e acertou.

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Se esse não aceitar, eu faço uma besteira, pensou o jovem gaúcho que servia pedaços de mozarela na churrascaria rodízio; quer dizer, tentava servir, porque o queijo era muito ruim e ninguém, mas ninguém mesmo aceitava. Freguês do estabelecimento, o senhor grisalho recusou mais uma vez a bolinha borrachenta, sendo, imediatamente, atingido na altura do coração pelo espeto do rapaz.

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Posso tomar conta, doutor? Claro, campeão! Doutor, campeão, murmurou, como se esta fosse uma cidade de vencedores, cheia de doutores e campeões, ao mesmo tempo em que ia tirando o canivete do bolso. Riscou todos os lados do automóvel novinho em folha daquele desgraçado que dava moedas de 10 centavos de gorjeta.

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Essa verdura está uma porcaria, velha e desmilingüida, vocês deviam ter vergonha de vender isso, disse a velhinha para o barraqueiro da feira, pela enésima vez. Mas será a última, pensou o rapaz, despejando um vidrinho de veneno bem no coração da alface verdinha, verdinha.

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Vai ser moleza, pensou o motoboy ao medir o corredor estreito entre dois caminhões que subiam a avenida, antes de se enfiar entre eles e, claro, antes que um dos motoristas, distraído, puxasse o volante só um pouquinho em direção ao outro caminhão. O trânsito ficou bloqueado três horas.

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Não foi nessa avenida, mas numa outra, que deu para ver direitinho as faixas luminosas, agora obrigatórias por lei, no que restou do capacete preso e esmagado entre as rodas traseiras do ônibus. Aparentemente o capacete era vermelho.

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Eu sabia que isso seria útil um dia, disse lá da cozinha em voz alta, à mulher que era meio surda, enquanto misturava o formicida marca Tatu num copo de guaraná sem gelo. Algumas gotas respingaram na receita que recebera do médico naquela manhã, após ser comunicado de que estava com Alzheimer.

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Pronto, acabou, adeus cidade maldita, disse entre dentes o homem que voltava para o interior do Rio Grande do Sul, vencido e desacorçoado, a poucos metros de entrar com tudo com sua Brasília 825 na traseira do caminhão que parou sem mais nem menos no meio da rodovia Régis Bittencourt. Ainda não tinha cruzado a fronteira de quem deixa São Paulo.

Luiz Caversan, 52, é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve para a Folha OnlineE-mail: caversan@uol.com.br

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