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domingo, 6 de outubro de 2013

Menina Inocência



É madrugada e ainda não há sol, embora claro.

A mulher de seus trinta e poucos entoa uma canção de ninar, sentada à beira do telhado úmido da casa de pedras (que certamente moeram ossos de alguns operários até edificada).

Está de camisola apenas, tão branca e transparente quanto sua pele - ora arroxeando com o vento frio.

Não fosse a geada e o chão coberto pelo fogo branco, o velho Antenor, seu vizinho, estaria ali varrendo e assoviando. Posteriormente prestaria testemunho então...

Mas ninguém viu -ou ouviu- o som macio, ôco do impacto.

Embolada em uma manta de bichinhos indistintos, aos poucos, distingue-se na calçada uma pequena mancha vermelha, escura.

Acima, Marta ainda entoa a canção de ninar, a que sempre recorria para pacificar o sono da criança nestas primeiras semanas.

Sua filha agora dorme, conclui amparando-se abraçada aos joelhos feridos pelas orações da véspera. Pobres joelhos...

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Uma vida, um botão

Girava o botão do punho esquerdo, duas vezes, já que tinha feito o mesmo com o direito. Acabou que arrancou... Tiro o outro?, pensou apertando os beiços. Pôs no bolso, enfim, protelando a decisão.

Estava atrasado e com a mente cansada demais para elaborar as devidas satisfações - ademais, de todo modo ela irromperia a mesma cara culpando-o pelo amargor de sua suposta TPM (diária). Interrompeu o passo: Relacionamentos podem ser cansativos às vezes... Ô, dia cheio!

Menos de três quadras da lanchonete de sempre. Esbarrou com o olhar de um estranho que, como manda o manual social, desviou para que cada qual prosseguisse seguro em sua própria solidão. Uma indiferença mal-encenada, só não mais patente que aquela que infligimos a um pedinte.

Parou novamente, aguardando o sinal. Mais alguns estranhos dividiam a calçada com pressa e quase empurrando-o aos automóveis. Animais! Sentiu um riso, talvez por seu terno barato e envelhecido, pensou envergonhado e autocensurando-se. Talvez não - era só ver dentes e lhe vinha essa impressão.

Olha para os dois lados da rua, mas resolve andar um pouco mais, fora do caminho habitual - a casa provavelmente estaria no mesmo lugar quando voltasse... Algumas ligações perdidas no celular, que prontamente desligou. Seguiu com um botão no bolso, outro por arrancar e uma ereção.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Bia

A compressa de camomila geladinha vai fechando os poros enquanto emagrece o olhar semi-morto - consciência que uma noite mal dormida revela sobre a idade. Com a visão e os cabelos desembaraçados do sono, agora sim, o dia começa.

Exceto pelo par de pantufas, Bia só abandona o quarto quando o espelho não deixa dúvida: impecável. Ela mesma acha graça no fato de parecer um personagem por usar sempre a combinação de camisa recatada, saia florida e maquiagem minuciosamente feita para não parecer maquiagem.

"Uma daquelas mulheres de comercial de margarina patriarcal", brinca fazendo beicinho. Apesar de independente (e de nem gostar de margarina), lhe agradaria um homem desse tipo "provedor", ficar em casa entretendo-se com as tarefas, com o mercado e as violetas teimosas à janela. _ Ainda troco por plástico!, aborrece-se.

Família, apenas mais um de seus sonhos imprecisos... Desde os 14 cuidando do lar e da mãe enferma, nunca tivera muito espaço para si. Na sala do minúsculo apartamento a vela que nessa semana do ano deixa religiosamente acesa arde perigosa ao lado do retrato de Dª Miriam - de quem herdou sua mania de limpeza, lembra olhando rancorosa para uma mancha no chão.

O tico de leite transborda na chaleira, única lembrança do velho, e a indecisão sobre chegar atrasada no trabalho ou limpar logo a torturará até inevitavelmente correr pro ponto de ônibus mascando umas bolachas amanhecidas. O único conforto é a sensação de adeus vinda com a sucessão de paisagens à janela - a janela que a salvará da ausência de verde de seu bairro e das caras aborrecidas no veículo. Descruza e recruza as pernas.


_ As mesmas caras..., pensa alto e logo recriminada por algum franzir de testa. A carapuça em verdade é para os infinitos clientes cuja voz abafada a sufocam diariamente no atendimento telefônico. Talvez fossem mais simpáticos se vissem como é bonita... Mas são todos iguais, assim como a voz de atendente de telemarketing...

Espia, com o mesmo olhar fúnebre de quando acordou, o nome "Fábio" no crachá. "Gente bonita é melhor tratada", resmungava repetindo para si que aquilo era temporário, como tudo.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Perigoso

_ Tédio...

_ Que há?

_ Não há; sem nada pra fazer.

_ Coisas a fazer sempre há... Depende do que se quer (e da disposição em fazê-lo). O tédio existe porque deixamos...

_ Que fazes, então, Boris?

_ Conferindo meu signum, se fiz tudo certo hoje...

_ Por isso gosto de ti; vives perigosamente!

_ Não se engane, "viver é muito perigoso..."

sábado, 14 de abril de 2012

20 Minutos

O ônibus para e boa parte dos passageiros desce. Uns apressados, provavelmente pelos ditames do líquido mal-aprisionado no corpo; outros menos, ainda acomodando os olhos indecisos à luz fria e aos produtos caros da loja de conveniências (?). E há a turma da fumaça, claro.

20 minutos a parada; tempo para deixar um cadáver no banheiro.

Norma suspira nervosa. Apoia a outra nádega na poltrona e tenta retomar o sono que não dormia. O rosto, untado em suor, lembra uma armadilha para insetos. Por que, afinal, desligam o ar-condicionado?

Sombras esgueiram-se de volta a seus assentos, umas ainda baforando a fumaça da última tragada à porta. Malditos, pensa, desejando sombriamente que morram de câncer...

A movimentação desperta algumas almas cansadas da viagem. Uma ou duas cutucam seus celulares. Outras remexem sacolas e começam a moer ruidosamente seus biscoitinhos, salgadinhos...

O sujeito adiante continua com seus "inhos" afins. Comprou agora? Trouxe previamente consigo para o momento mais inconveniente? créc... crréc... crrréc.... Devagar comia, consciente do desagravo social em meio ao silêncio. Novo suspiro... Por que não come logo essa mer...?!

Alguém resolve manifestar-se, crente de que o barulho no celular levaria a mensagem em prol do silêncio, mas que no máximo propaga o sexismo presente na música brasileira de mais baixa criatividade...

Madrugada. 20 minutos passados; era tempo de deixar um cadáver no banheiro... Norma está cheia de pensamentos sombrios.

domingo, 4 de março de 2012

Coisas Pequenas

Trocava figurinhas sobre despesas e custos - fixos, variáveis, diretos, indiretos. O tom, entre solícito e bazófia, era sobre matéria boba de prova importante. Tentava graduar-se nessa profissão que beira o abstrato e o misticismo, a do Administrador.

O outro emendou metido num monólogo, entre suas orelhas deselegantemente acorrentadas ao smartphoMe, enumerando objetivos "de vida". Inglês, Excel, pós-graduação, aprender a mexer na calculadora HP, e beber e comer todas na balada do fim de semana... E isso arrancando bocejos daqueles que mal cabem na boca.

De quem? Não do interlocutor. Este, como a maioria adestrada de nós, socializava com um belo sorriso de aeromoça, esperando sua vez de retomar a prosa. Quem estava com as nádegas inquietas na poltrona à frente, procurando posição para cochilo até a próxima estação, era o pobre ouvinte que compartilhava passivamente o diálogo no vagão do metrô paulistano.

Tão impregnada essa cultura do sucesso, da performance pessoal, laboral, sexual, que até sinto remorso pelo desinteresse. "Sem isso você não será alguém" (?!) Nascemos pra "realizar" e consumir - alimento, entretenimento, coisas, pessoas... Vícios...

Gosto deixar em aberto (não muito seriamente) a possibilidade de vender côcos e bijouterias nalguma praia Brasil afora. Mas nem sei artesanato - a menos que arte no Photoshop o seja considerada.

Estamos todos tão escravos do utilitarismo, um dos itens da sopa intragável da socieade que criamos e que nos causa tanto estresse, que até o silêncio está sendo esquecido, por "inútil"...

Coisas Pequenas

sábado, 24 de dezembro de 2011

Empurrando a vaquinha no barranco

Uma vez ouvi de um amigo uma história que esse ano foi meu tema. Não lembrava direito, então joguei no Google, óbvio:
Um velho sábio [sempre é um sábio, aff] e seu ajudante chegaram numa pequena fazenda onde moravam um homem e seu filho, e pediram para passar a noite ali. A miséria e a desolação do lugar era total e eles dependiam totalmente do leite que tiravam de uma vaca amarrada à beira da janela.

O mato tomava conta de tudo à volta deles e aliado à sujeira dava ao lugar um aspecto sombrio e desalentador. Conversando com os dois homens, o velho sábio viu-os conformados com a situação de miséria e penúria em que estavam.

Ao sair da casa de madrugada, o sábio puxou a vaca pela corda e a empurrou no primeiro barranco que encontrou, para espanto total do seu ajudante.

Um ano depois os dois voltaram e para surpresa do ajudante do sábio, o lugar estava totalmente modificado. Onde havia miséria, havia agora sinais de fartura e abastança. Pai e filho, ao contrário dos andrajos de um ano atrás, vestiam roupas boas e novas. Na garagem havia carros e no celeiro ao lado caminhões e tratores.

O que havia acontecido, perguntou o sábio? Alguém, que eles não sabiam quem era, havia empurrado a vaca deles no barranco, e sem outra alternativa eles viram que tinham de trabalhar arduamente. E foi o que fizeram. E trabalhando, a vida deles se modificou radicalmente.

Quantas vezes precisamos tomar umas sacudidas da vida ou de alguém que empurre barranco abaixo a nossa vaquinha...

Bom, dispenso colar aqui a óbvia lição de "moral" etc.

Tem aquele dito cansado e genérico de que "às vezes, precisamos perder algo para dar valor". Às vezes. Mas não raro esse valor também é apenas falta daquilo a que estavamos acomodados, mas que não estava fazendo a tal "diferença". Ponto positivo se a subtração foi uma decisão própria e não um percalço.

Por outro lado, também há o que precisamos perder para enxergar além; é uma maneira da vida nos obrigar a melhorar, obrigar a tirar da gaveta aqueles desejos que há tanto protelamos...

Então dá pra dizer que "há males que vêm para o bem?". Ah, vá ser ingênuo assim na ponte-que-caiu. Males vêm para o mal! O bem a gente constrói quando se levanta.

Algumas vacas me empurraram em 2011. Outras eu mesmo empurrei.
3º ano feliz com saldo positivo!

Pode me dar um abraço?


Foto de Fabio Sabatini: Can't Stop The Self-Hug

Estava sentado no banquinho da praça desligado do planeta, exceto pelo ventinho e o sol teimando em atravessar os escuros óculos.

Psiu, fez a senhora no banco ao lado.Um pouco cismado (não são só os animais que têm o prudente medo do bicho homem), atendeu ao pedido e avizinhou as nádegas lá do ladinho.

Em tom de clarividência perguntou se era paulista. "Essa velha quer me comer, só pode".Sim, respondeu, foragido.

Sem coordenação suficiente nas mãos, a estranha pediu que pegasse o isqueiro e o cigarro. Mesmo odiando esse tipo de incenso, acendeu só para ver aonde daria (câncer!, torceu sombriamente).

Já íntima, contou que tinha depressão e que estava esperando não sei o que para ir no aniversário da filha. Devia ser mais uma daquelas que a velhice e a decepção tirou o juízo para lhe conceder no imaginário aquilo que não conseguiu colocar em seu enredo mundano...

Ouviu-a até o silêncio e a vontade de voltar à brisa solitária vierem. Logo não titubeou muito em fingir chegar alguém que esperava.

Você pode me dar um abraço? Não, isso eu não posso não, senhora. E despediu-se.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Os Adultos




"Os adultos são gente crescida que vive sempre dizendo pra gente fazer isso e não fazer aquilo. Interrompem sempre o que a gente está fazendo pra mandar fazer outra coisa que a gente não quer, mas quando a gente interrompe eles por qualquer motivinho o menos que apanha é uma espinafração na frente dos de fora. Adulto promete muita coisa, agora fazer mesmo que é bom eu nunca vi. Quando a gente cobra, eles dizem que menino chato ou então falam esqueceram e vão fazer no domingo que vem. Eles sempre dizem que no seu tempo não era assim mas nunca fazem o que obrigam a gente a fazer, como apanhar tudo o que caiu no chão, andar sempre limpo e dizer somente a verdade. Os adultos também obrigam a gente a vestir muito limpinho pra ir nas festas mas eles mesmos vão de qualquer maneira que às vezes, até dá vergonha, como aquela calça toda apertadinha da mamãe e aquela toda largona do papai. Eu quando crescer vou ser adulto só porque sou obrigado senão eu ia ser sempre pequenininho."

Por Millôr 

sábado, 7 de junho de 2008

No cotidiano da grande cidade

(à moda dos mini-contos)

Era sempre a mesma coisa, aquele carrão parava no cruzamento, ele se aproximava, limpava o pára-brisa com esmero e estendia a mão, à espera do trocado, mas o motorista acelerava e ia embora, sem ao menos olhar para o lado. Desta vez ele foi mais rápido e cortou a jugular do cidadão com um caco de vidro dos grandes.

*

No terceiro dia seguido que ele esperou ela entrar no metrô lotado e já foi se encostando por trás, encoxando-a, ela até facilitou as coisas. Mas, no momento exato em que o trem partiu, sacou a agulha de tricô da bolsa e enfiou com tudo no vão das suas próprias pernas, absolutamente segura de que acertaria o alvo, e acertou.

*

Se esse não aceitar, eu faço uma besteira, pensou o jovem gaúcho que servia pedaços de mozarela na churrascaria rodízio; quer dizer, tentava servir, porque o queijo era muito ruim e ninguém, mas ninguém mesmo aceitava. Freguês do estabelecimento, o senhor grisalho recusou mais uma vez a bolinha borrachenta, sendo, imediatamente, atingido na altura do coração pelo espeto do rapaz.

*

Posso tomar conta, doutor? Claro, campeão! Doutor, campeão, murmurou, como se esta fosse uma cidade de vencedores, cheia de doutores e campeões, ao mesmo tempo em que ia tirando o canivete do bolso. Riscou todos os lados do automóvel novinho em folha daquele desgraçado que dava moedas de 10 centavos de gorjeta.

*

Essa verdura está uma porcaria, velha e desmilingüida, vocês deviam ter vergonha de vender isso, disse a velhinha para o barraqueiro da feira, pela enésima vez. Mas será a última, pensou o rapaz, despejando um vidrinho de veneno bem no coração da alface verdinha, verdinha.

*

Vai ser moleza, pensou o motoboy ao medir o corredor estreito entre dois caminhões que subiam a avenida, antes de se enfiar entre eles e, claro, antes que um dos motoristas, distraído, puxasse o volante só um pouquinho em direção ao outro caminhão. O trânsito ficou bloqueado três horas.

*

Não foi nessa avenida, mas numa outra, que deu para ver direitinho as faixas luminosas, agora obrigatórias por lei, no que restou do capacete preso e esmagado entre as rodas traseiras do ônibus. Aparentemente o capacete era vermelho.

*

Eu sabia que isso seria útil um dia, disse lá da cozinha em voz alta, à mulher que era meio surda, enquanto misturava o formicida marca Tatu num copo de guaraná sem gelo. Algumas gotas respingaram na receita que recebera do médico naquela manhã, após ser comunicado de que estava com Alzheimer.

*

Pronto, acabou, adeus cidade maldita, disse entre dentes o homem que voltava para o interior do Rio Grande do Sul, vencido e desacorçoado, a poucos metros de entrar com tudo com sua Brasília 825 na traseira do caminhão que parou sem mais nem menos no meio da rodovia Régis Bittencourt. Ainda não tinha cruzado a fronteira de quem deixa São Paulo.

Luiz Caversan, 52, é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve para a Folha OnlineE-mail: caversan@uol.com.br